segunda-feira, 9 de novembro de 2009

A Violência em Casa: Contos Domésticos da Criminalidade


Este relatório de 1996 do IIIº Congresso Português de Sociologia aborda numa linguagem acessível o problema da violência doméstica, contextualizando o problema com os dados portugueses.

Apesar de os dados já não estarem, de todo, actuais, aconselha-se a leitura do documento para maior compreensão deste problema nacional que ainda não conseguiu a importância devida no seio social. É necessário cada vez mais ao direito penal uma atenção redobrada a estes casos, devido à peculiar relação interpessoal que envolve a família.

Após a leitura atenta deste documento, o Fórum Política e Sociedade não pode deixar de alertar para os casos em que a Mulher , a vítima mais comum. é constatemente agredida e forçada a conviver, servir na lide da casa e até ter relações sexuais com o Cônjuge.

Tantas vezes ignoradas pela comunidade e pelas autoridades, as vítimas acabam por "tomar conta do assunto pelas suas próprias mãos", e acabam julgadas pelo sistema jurídico-penal.

Pode-se ler aqui o relatório, seguem-se os excertos selecionados:

Os dados que vamos apresentar constituem reflexões em curso e foram retirados, ainda sob a forma de resultados preliminares, de duas pesquisas, que se complementam na utilização de análises intensiva e extensiva e cujo ponto comum de articulação se pode encontrar na análise da violência contra as mulheres, mas no contexto específico da conjugalidade.
Uma das pesquisas é especificamente sobre o estudo da violência contra as mulheres, que embora não se restringindo ao âmbito da conjugalidade passa necessariamente por lá. A outra pesquisa, sobre a extrema violência conjugal - o homicídio e as rupturas violentas da conjugalidade, situasse exclusivamente no domínio da conjugalidade, não se limita ao estudo da violência contra as mulheres e focaliza fundamentalmente a compreensão da relação vítima-agressor, pelo que interessa, neste momento, e dado o tema da comunicação e o ponto de cruzamento com o estudo anterior, evidenciar apenas os aspectos referentes às mulheres

(...)

São vários os estudos que apontam a família como um dos locais onde existe mais violência. Tratase contudo de uma violência secreta e silenciada que escapa ao controlo público e acerca da qual não se tem o costume de falar. Neste quadro são mais facilmente detectadas as violências mais atrozes, como o homicídio. De um modo geral, estima-se que um quarto a um terço das mortes por homicídio ocorrem no seio da família (Gelles, 1987; Boisvert et Cousson, 1994; Bart and Moran, 1993), o que levou alguns autores a dizer que é maior o risco de se poder ser morto na família do que em outro contexto qualquer.
Com este estudo pretendeu-se analisar uma das mais incontornáveis (sob o ponto de vista da
sua manifestação) formas de expressão da violência conjugal (homicídio conjugal) e ver que conflitualidades sustenta este tipo de violência extrema. Constituirá este tipo de crime, perante um quadro de constrangimentos sociais ao divórcio / separação (Goode, 1980; Kellerhals, 1982) e na ausência de um sistema ontológico de segurança, uma reacção “não reflexiva do eu” (Giddens, 1994) às conflitualidades conjugais? Foi em torno desta questão genérica que a investigação ([4]) se desenvolveu.
No contexto desta comunicação, vamos salientar apenas duas ou três questões que evidenciam a situação da mulher, suas reacções e interacções no quadro da conflitualidade conjugal.
Com efeito, este crime embora não tendo uma localização regional precisa, atinge fundamentalmente as pessoas dos estratos sociais mais baixos, que estão em contextos de grande constrangimento social ao divórcio/ separação.

(...)

As mulheres são as principais vítimas deste tipo de violência e quando se constituem como agressoras, são-no sobretudo depois de terem sido alvo de agressões diversas ao longo da conjugalidade, as quais se intensificaram fundamentalmente nos dois últimos anos que precederam o crime de homicídio.

(...)

Muitas destas mulheres cometeram o crime depois de terem tentado romper por várias vezes a conjugalidade, sem sucesso, ou porque os maridos as iam buscar sob “porrada” e ameaças diversas, ou porque os familiares e as próprias autoridades a quem muitas se queixaram não valorizaram suficientemente os seus pedidos de ajuda. “ou era ele ou era eu”, proferem com frequência, como tendo sido esta a alternativa possível. Neste quadro, a vítima transforma-se em agressor e é como tal que é julgada pelo sistema jurídico-penal.
É com amargura, intercruzada com dor e sentimento de culpa, que estas mulheres viram resolvida uma situação que consideram de “insuportável” e para a qual não encontraram outra solução senão algo que elas próprias incriminam “foi horrível o que aconteceu”. Vitimaram sobretudo o homem com quem viviam e que as maltratava, sendo comum nos seus discursos captarem-se as situações contraditórias e paradoxais que experimentaram, dizendo muitas continuar a gostar do homem que mataram “ e....se fosse hoje (... preferiam ...) continuar a levar porrada toda a vida a (... terem feito o que fizeram...)”.

O quadro em que este tipo de violência é exercida pelo homem, tendo como vítima a mulher é bem outro, do qual não vamos falar por não fazer parte do tema proposto.
Acrescenta-se apenas que, embora os homens cometam mais homicídios do que as mulheres, as mulheres, quando o fazem, fazem-no sobretudo no contexto da conjugalidade (58%), proporção que diminuiu para 13% no caso dos homens.

(...)

Os recenseamentos são, deste modo, muitas vezes, a ponta visível de um iceberg, através da qual é possível descobrir uma realidade sociologicamente complexa, onde motivações e expectativas contraditórias se constituem como palco da violência.

(...)

Nem sempre o processo de libertação, autonomização e promoção da individualidade e passagem de um modelo matrimonial para outro se efectua de forma pacífica. Por entre a “dor” e violência, o “querer” e “não querer”, e a definição de um futuro construído na incerteza passam ainda muitas rupturas da conjugalidade. A superação das conflitualidades conjugais e a resolução do binómio amor/ódio, pode assumir diferentes formas de manifestação da violência, sendo a mais extrema a ruptura violenta do conjugalidade, (homicídio conjugal) como foi, nessa investigação, intitulada.

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